terça-feira, 7 de maio de 2013

Altos e baixos de um recém-nascido


O Festival O Boticário na Dança encerrou ontem em São Paulo. Consegui ver todos os espetáculos, então aproveito agora para fazer um apanhado dos altos e baixos do evento. Lá vai.

Sobe
- A curadoria: Ao bancar a vinda ao Brasil de quatro companhias internacionais completamente inéditas pelas bandas de cá, todas com trabalho sedimentado a partir dos anos 2000, a curadoria do alemão Dieter Jaenick (ex-Carlton Dance) demonstra uma ousadia aparentemente abandonada pelas produtoras que costumam trazer grandes grupos estrangeiros e se acostumaram a apresentar repetecos não só de grupos, mas até mesmo de programas, como se quisessem reprisar o sucesso obtido em turnês anteriores. Sabemos, porém, que a coisa não funciona bem assim e nada garante público.

- O preço dos ingressos: Não surpreende que o Festival tenha iniciado com todas as apresentações com ingressos esgotados. Afinal, pagar R$ 20 para ver uma produção exigente do ponto de visto logístico, com cenários robustos e elenco vasto, não é nem razoável, é barato mesmo. E começar tudo com garantia de casa cheia – e de filas de espera longuíssimas – dá um gostinho bem saboroso na boca.

- A opção por organizar um festival: Tenho um chute. Pelo que vi nestes últimos dias, organizar apresentações encarrilhadas dia após dia, usando um mesmo bombardeio de divulgação para todas as atrações, é mais eficiente para a formação de público novo do que a organização de temporadas. Claro que os habitués da cena da dança contemporânea de São Paulo estavam por lá, mas o que marcou foi ver mesmo muita cara nova, e em repetidos dias. Ponto para o ingresso barato e a divulgação.

Desce
- Privilégio da Shen Wei: Não deu pra entender muito bem por que a Shen Wei Dance Arts foi a única contemplada com dois dias de apresentação. Ok, o programa foi interessante – uma dobradinha com "A Sagração da Primavera" e "Folding" –, dando vazão a aspectos completamente distintos de uma mesma companhia, com a primeira peça extremamente virtuosa e a outra com uma dramaturgia mais bem trabalhada e emocionante. O problema é que faltou a ela o impacto que uma obra como a de Hofesh Schechter teria para abrir os trabalhos.

- Encerramento numa segunda (!): Também não deu pra entender de jeito nenhum por que resolveram por fim ao festival numa segunda-feira – ainda mais quando o programa de encerramento seria o mais longo de todo o festival, numa sequência da Quasar e do Grupo de Rua de Niterói, cada um com trabalhos de 60 minutos de duração. A perspectiva de fim para depois da meia-noite, quando o transporte público fica escasso, fez mais da metade do público se mandar antes da hora, no meio do espetáculo, o que é sempre péssimo. Além disso, perdeu-se a oportunidade de fechar de forma apoteótica, como uma grande festa. Sair do Auditório vendo aquele monte de poltronas já vazias deixou um gostinho ruim.

- Grupo de Rua de Niterói: O trabalho mais desafiador de todo o Festival foi também o mais mal programado. Apesar de seguir a linhagem da popular street dance, "H3" não é uma peça de simples absorção, que causa empatia de cara. Ela demanda tempo e abertura do público, algo que só se consegue numa intricada negociação entre artista e plateia que dificilmente se realizaria às 22h30 de uma segunda-feira, hora em que a peça começou, logo após "No Singular", trabalho de verve muito pop da Quasar. Acabou que uma coisa não combinou com a outra, apesar de os dois espetáculos funcionarem bem (mas cada um no seu quadrado).   

sábado, 4 de maio de 2013

"É muito caótico fazer dança", diz Hofesh Schechter

O israelense Hofesh Schechter era um cara dividido entre a música e a dança até resolver unir as duas paixões no início dos anos 2000 com a fundação de sua própria companhia, sediada em Londres. "Political Mother" é a síntese da fusão feita pelo coreógrafo entre essas duas linguagens. Criado em 2010, o espetáculo foi atração de ontem da edição paulistana do Festival O Boticário na Dança. Nele, dança e rock and roll ao vivo se unem para criar um manifesto jovem e poderoso sobre a condição de opressão sob a qual está submetido o homem contemporâneo. Fruto da aclamada companhia israelense Batsheva, Schechter toma emprestados elementos da dança folclórica para criar uma movimentação original e contagiante. Segue abaixo a íntegra da entrevista que fiz com ele, publicada ontem no jornal Metro.


Você já esteve na Batsheva Dance Company e também teve uma banda de rock. Você poderia falar da relação entre dança e música em seu trabalho?
Comecei na arte como pianista, quando tinha 6 anos. Meu ponto de partida foi esse: ouvir muitos discos de música clássica. Descobri a dança quando tinha uns 12 anos, por meio da dança folclórica, e o que mais gostei dela foi o aspecto coletivo. Com o piano, eu praticava tudo sozinho. Na dança, eu poderia estar com outras pessoas. Foi meio desafiador, mas também interessante fazê-lo. Quando entrei na Academia, em Jerusalém, escolhi entrar no departamento de dança pelo mesmo motivo. Preferia estar com outros do que sozinho numa sala. E daí entrei na Batsheva. Fiquei alguns anos e foi uma experiência incrível, aprendi muito, mas também sentia que meu coração estava um pouco dividido. Eu realmente queria dançar, mas sentia que o lado musical da minha vida estava dormente e que sentia falta dele. Eu realmente queria me reconectar com esse aspecto. Daí saí do Batsheva. Não sabia bem o que fazer, então comecei a tocar bateria. Meio por acaso, cheguei a Londres e toquei em uma banda de rock, mas ela acabou se desfazendo por falta de grana. Então me vi tendo que dançar de novo em uma companhia. Mas depois de dois anos na cidade, decidi que queria fazer meu próprio trabalho. Foi a primeira vez que me senti pleno, por poder fazer tanto música quanto dança, e fazer esses dois mundos ficarem juntos de uma maneira completamente harmônica. Tive um prazer imenso de poder criar todo o trabalho: a música, a cenografia, a coreografia. É muito difícil, mas há algo de muito satisfatório nisso tudo, algo de muito excitante.


Seu trabalho não parece funcionar bem no vídeo.
Acho que o público tem um grande papel no espetáculo. Talvez ele esteja ciente do fato de que ter outras mil pessoas também testemunhando aquilo qe está acontecendo no espaço é parte do que o torna poderoso. Há algo sobre o espetáculo, o poder da música ao vivo. Algo em que realmente penso quando faço um trabalho é criar algo para ser mostrado, algo parecido com uma grande cerimônia. Sem as pessoas, ele perde a força. Acho que há algo na peça que talvez as faça não se sentirem apenas como espectadores, mas parte daquilo. E talvez você não se sinta assim se a vir em um DVD.


Uma das apresentações de "Political Mother" teve parte das poltronas retiradas para que o público pudesse ficar de pé. Foi ideia sua?
Foi algo que imaginei depois de muita gente me dizer que gostaria de se mexer, que se sentiu preso à cadeira ao ver meu trabalho. Pensamos nisso e encontramos a ideia de fazer o público se levantar se quisesse, como em um show de rock. Fizemos isso em "Political Mother – The Choreographer's Cut", que tem 25 músicos no palco. Então, na verdade, é mesmo um grande show de rock. A diferença é incrível, porque as pessoas se sentem muito mais livres para responder ao trabalho quando estão de pé. Elas gritam e é incrível, eu realmente gosto. Você vê as pessoas deixando a música e a dança se apoderar do corpo delas. E isso também quebra um pouco as regras do teatro.


Você sente que "Political Mother" é a consolidação de sua obra?
Não sei. Não vejo as coisas desse modo. Acho que ser um artista é algo muito frágil. Confiança não é algo com o qual eu me sinta confortável. O trabalho em dança – a coreografia – é muito temporário. Você faz algo, está logo no palco, tem a perfomance, que vai e vem. Então, é difícil para mim ter o sentimento de uma conquista. É muito caótico fazer dança. Não é como escrever um livro. Posso ver um progresso e ter a noção de que meu trabalho se torna mais complexo. Ele se transforma lentamente, mas toma ângulos diferentes. Sempre faço trabalhos sobre o que eu sou, sobre o ponto em que estou na vida.


Que questões o preocupavam enquanto concebia "Political Mother"?
Acho que o principal elemento foi fazer realidade diferentes se chocarem umas com as outras. Cada um desses mundos representa parte da nossa vida ou das energias que existem no mundo. Então eu senti que seria interessante colocá-los próximos um ao outro, quase como em um filme, e criar uma resposta emocional a partir daí. Acho que as primeiras são frustração e raiva. Outra, que vêm depois, é aceitação. Pensei muito e percebi que vivemos em um mundo maluco! Tentei trazer questões sobre controle, perseguição, opressão e a confusão entre escolher seguir algo e acabar sendo escravo desse algo. Em suma, é um trabalho sobre a política de nosso mundo e como sobrevivemos à opressão.


Por que criar um "Choreographer's Cut"?
Foi uma pequena piada. Óbvio que quando fiz o primeiro trabalho, fiz o que realmente queria, mas com "Choreographer's Cut" eu tive mais liberdade. Recebi um apoio para fazer o que eu quisesse, com o dinheiro que precisasse. Isso me deu liberdade para criar uma verdadeira celebração. Não senti que mudei o coração da peça, que é uma massa de gente, e ela acabou ainda mais poderosa. É barulhento, grande e arrebatador.

Um cometa na dança contemporânea

Escrevi o texto abaixo em setembro de 2010, horas depois de ter assistido "Political Mother", de Hofesh Schechter, pela primeira vez, durante a Bienal de Dança de Lyon. Quando soube que a peça estaria no Festival O Boticário na Dança, fiquei animadíssima. As lembranças que tinham era de uma peça jovem e vigorosa, capaz de atingir facilmente a uma plateia leiga, mas sem ser puramente comercial ou cheia de concessões. Uma peça superurbana, com a cara de São Paulo e do público daqui. Pela reação que vi na noite de ontem, parece que ela "bateu". Na minha revisão, no entanto, encontrei alguns poréns. Pensei em reescrever, mas acho que a essência do texto - escrito originalmente para a Folha de S.Paulo, mas nunca publicado - se mantém. Por isso, aqui vai.



Ditadura, semitismo, ritual, massa e pop rock são palavras que se aglomeram em torno do trabalho mais recente do coreógrafo israelense Hofesh Shechter. “Political Mother”, que foi apresentado no último fim de semana na 14ª Bienal de Dança de Lyon, é uma bomba de informações sobre a condição política do homem contemporâneo.
Estabelecendo uma ponte direta entre passado e presente, o trabalho tem arrastado comentários positivos tanto de público quanto de crítica.
A hecatombe provocada por Shechter é anunciada antes mesmo do início da peça. Na entrada da sala, recebe-se um par de tampões de ouvido: prenúncio de que o que viria faria muito, muito barulho.
A trilha, composta com participação do coreógrafo, é posta no volume máximo. Nela, uma música de base, parecida com as tradicionais judaicas, é sobreposta por marchas militares e rock and roll tocados ao vivo, com músicos no próprio palco.
Ao fundo, dois bailarinos se alternam ora no papel de líder de banda rock, ora no de um ditador aos moldes de Adolf Hitler. Enquanto isso, outros tantos tomam o palco numa dança frenética, com movimentos propositalmente cheios de afetações.
A cenografia é carregada, predominantemente escura, coberta de fumaça, com raras aberturas de luz. Todos esses elementos contribuem para uma rica experiência auditiva e visual que empurra inevitavelmente o público para dentro da cena, criando uma atmosfera cativante, principalmente para os mais jovens.
Shechter se aproveita dessa captura para propor uma reflexão sobre a dificuldade da coexistência e os riscos da intransigência política e cultural, num ritmo quem mantém uma tensão de arrepiar.
É um espetáculo por vezes excessivo, que talvez ganhasse mais força caso melhor editado. Mas o saldo é positivo e impressionou o público lionês após uma estreia de sucesso, em maio, na Inglaterra.
Apesar de ter nascido em Jerusalém e ter integrado a tradicional companhia Batsheva, o coreógrafo reside em Londres desde 2002, onde trabalha com o grupo que leva seu nome. “Uprising”, criada em 2006, é o marco que o fez ser apontado como novo “cometa” da dança contemporânea.