sexta-feira, 19 de julho de 2013

Duas boas escolhas

Elenco oprimido de "Sra. Margareth" todo juntinho. Crédito: Divulgação
Há algo de muito animador no programa que a Cisne Negro Cia. de Dança apresentou no fim de junho no Teatro Sérgio Cardoso. Enxuto na medida certa para uma temporada popular, ele soube evidenciar o que o grupo tem de melhor: a versatilidade e a qualidade técnica de seus competentíssimos bailarinos.

A abertura ficou por conta de “Revoada”, de Gigi Caucileanu, criada em 2007 para celebrar os 30 anos da trupe fundada por Hulda Bittencourt. De cara, a peça mostra a habilidade do coreógrafo em dialogar de forma clara – e eficiente – com o propósito da encomenda. Isso se vê logo no título – uma referência explícita ao nome da companhia – e nos tutus vermelhos do figurino – releitura atualizada do corpo de baile do clássico balé de repertório “O Lago dos Cisnes”, do qual o Cisne Negro é um dos personagens centrais.

A eficácia conquistada por Caucileanu está também presente na trilha escolhida: excertos de “Pássaro de Fogo” e “Fireworks”, ambas de Igor Stravinski (1882-1971), que exaltam não apenas outro tipo de ave, mas, principalmente, outro tipo de ação diferente da do balé. É como se o coreógrafo quisesse apontar a evolução do grupo, que nasceu dentro do clássico, bateu asas e se transformou em algo maior, firmando-se como um conjunto contemporâneo sólido.

Isso se vê na movimentação, que inverte papéis e tira os homens do tradicional posto de partner, em duos, e os faz apresentar um virtuosismo e um protagonismo costumeiramente relegados às mulheres no balé. Apesar dessa escolha, a peça ainda segue um lirismo próprio do clássico – que o grupo nunca abandonou enquanto técnica. Ele ganha ainda mais beleza quando executado com este elenco afiado (mas que não perderia nada se afinasse um tantinho mais a sincronia).

“Revoada” fez um contraste positivo com a estreia nacional de “Sra. Margareth”, de Barak Marshall. Baseado na dança-teatro, o trabalho é um recorte de “Monger”, de 2008, primeira criação do coreógrafo desde que deixou o posto de residente na prestigiada Batsheva Dance Company, em Israel. Não há exatamente uma narrativa a ser contada, mas o argumento põe os bailarinos como funcionários presos em um porão por uma patroa abusiva.


A movimentação de Marshall é vigorosa como a de Caucileanu, mas segue uma linha mais pop que conversa muito bem com uma geração que cresceu vendo divas como Madonna e Beyoncé. Esse, aliás, é o melhor aspecto da obra: saber fazer-se impactar em um público que não está acostumado a ver dança, mas de forma inteligente, com uma dramaturgia equilibrada capaz de manter a peteca no ar durante todo o tempo de duração. Com isso, "Sra. Margareth" se afirma como a melhor estreia do Cisne Negro em anos.

quarta-feira, 17 de julho de 2013

Queremos os étoiles!

#Vempracá, Alina Somova, vem! Crédito: Divulgação

Depois de um fraco giro pelo Brasil em 2011, o Balé do Teatro Mariinski (antigo Kirov) volta ao país em novembro do próximo ano dentro da temporada 2014 do Theatro Municipal de São Paulo, anunciada ontem pelo diretor artístico John Neschling. O programa, no entanto, não foi revelado. A única certeza é que a trilha será conduzida pela própria Orquestra Sinfônica Municipal. 

Fico naturalmente alvoroçada com qualquer turnê brasileira de companhias internacionais históricas, mas o que os russos apresentaram por aqui há dois anos me faz ver a nova visita com desconfiança. Aproveitando a temporada de protestos pelo Brasil, começo já por aqui uma campanha: queremos os étoiles! 

Foi frustrante ver o terceiro elenco do grupo apresentado como astros da dança do leste europeu quando, a olhos vistos, eles simplesmente NÃO ERAM, fazendo vir abaixo o clichê (que perdura mais de 20 anos após o fim da URSS) de que o Kirov representa a nata do balé clássico mundial ao lado de seu conterrâneo Bolshoi.

Em qualquer temporada dessas, pagamos bem caro pelos ingressos. Da última vez, foi algo em torno de R$ 300, preço equivalente ao das turnês nos Estados Unidos e na Europa. Acho que merecemos ter o mesmo nível apresentado nesses lugares, não?

A outra demanda da campanha é: esqueçam "O Lago dos Cisnes"! É óbvio que esse é um clássico inegável e que é uma delícia assisti-lo com a companhia para a qual Petipa e Ivanov o criaram, mas ele esteve em TODAS as outras quatro turnês do grupo pelo Brasil. Acho saudável o elenco se provar em outros desafios, ainda mais quando se tem um público ainda muito carente de formação.

Quebra-Nozes com sotaque paulistano
Outra novidade da temporada 2014 do Theatro Municipal é uma montagem do clássico "O Quebra-Nozes", em dezembro, pelo Balé da Cidade de São Paulo. Não tenho registro da companhia ter montado tal peça depois da revolução que a assolou nos anos 1970, quando abandonou a faceta de corpo de baile clássico para defender um repertório exclusivamente moderno e contemporâneo. 

Não dá para saber, portanto, esta será uma criação ou remontagem de uma coreografia já existente. De qualquer modo, será interessante ver que leitura o grupo dará para a história da noite de Natal inesquecível da menina Clara. O que se sabe é que a peça contará com a Orquestra Experimental de Repertório na execução da trilha de Tchaikovski (1840-1893). 

Em 2014, o Balé sobe ainda outras três vezes no palco do Municipal, duas delas com acompanhamento orquestral, mas não foram reveladas as peças que devem compor os programas. 

terça-feira, 16 de julho de 2013

Enfim, maduros

Nielson Souza e Morgana Cappellari em
"Peekaboo". Crédito: Marcela Benvegnu 
Quando a São Paulo Companhia de Dança foi criada, em 2008, seu corpo de baile era formado basicamente pela nata de algumas das melhores escolas de balé clássico espalhadas pelo país. Essa escolha entrava em choque com o estilo de trabalho buscado desde então, voltado, em sua maior parte, a peças modernas e contemporâneas.

Passados cinco anos, essa equação se inverteu. Em sua primeira temporada de estreias de 2013, o grupo demonstrou ter conquistado definitivamente maturidade para defender as obras que ostenta em seu repertório.    

O que se viu ao longo de três semanas de junho no teatro Sérgio Cardoso foram bailarinos que chegaram profissionalmente crus à companhia, com pouco ou nenhum histórico de trabalho anterior, e que tomaram, enfim, ciência de suas possibilidades. Mais importante: cresceram juntos, fazendo com que esse legado não seja apenas individual, mas de todo o grupo, que começa a forjar assim uma identidade e uma assinatura a despeito da grande renovação de profissionais típica desse campo de trabalho.

Com isso, nomes como Fabiana Ikehara, Morgana Cappellari e Yoshi Suzuki ajudaram a fazer com que o repertório contemporâneo da companhia subisse degraus em densidade e camadas de leitura. O trânsito nessa área ficou tão mais familiar que foi o balé que sobrou na jogada: nunca o grupo falhou tanto quanto dessa vez em “Theme and Variations”, peça de verve extremamente clássica de George Balanchine (1984-1983).

Outra observação é que, a despeito dessa maturidade conquistada, o elenco precisa olhar com mais cuidado para suas peças mais antigas e trabalhar, principalmente, a sincronia, como em “Bachiana no 1” (2012), de Rodrigo Pederneiras, que carece de uniformização nas intenções dos movimentos entre todos do conjunto – algo já visto antes e que, aparentemente, se perdeu no meio do caminho.
Das três estreias da temporada – todas contemporâneas –, duas delas partiram de coreógrafos com os quais os bailarinos já haviam tido contato, o que possibilitou um aprofundamento em torno de suas linguagens.

A remontagem de “Por Vos Muero” (1996), de Nacho Duato, peca por carregar certo cheiro de mofo na cenografia e no figurino. Sua movimentação, no entanto, sabe fazer um diálogo importante com a passionalidade da trilha, baseada em música antiga espanhola, e acaba bem defendida pela trupe. O desempenho não surpreende de todo, já que uma das remontagens mais bem resolvidas da companhia até então havia sido justamente a de “Gnawa” (2005), também de Duato.

Apesar disso, a mencionada maturidade do grupo fica mesmo evidente na inédita “Peekaboo”, de Marco Goecke. O grupo, que já havia lidado com o vocabulário de movimentos muito específico do coreógrafo alemão na remontagem de “Supernova”, em 2010, pôde agora mergulhar ainda mais na linguagem dele nesta criação original para a SPCD. Embalada pela “Simple Symphony”, de Benjamin Britten (1913-1976), “Peekaboo” é mais densa que “Supernova” e só funciona a partir de um exaustivo trabalho de precisão e refinamento dos gestos frenéticos e ágeis propostos por Goecke.

Inspirada pela brincadeira de esconder e aparecer típica das crianças, a peça faz uso inteligente da trilha de Britten, composta por ele ainda na infância, e tem seu momento mais belo justamente no ponto menos “goeckiano”, em que a respiração intencionalmente ofegante dos bailarinos quase sufoca a trilha enquanto eles estão parados no mesmo lugar, movimentando apenas os braços, sob uma penumbra, evocando o desalento da solidão de quem ainda não foi “achado” na brincadeira.

Diante desse resultado, a primeira parceria da SPCD com Luiz Fernando Bongiovanni, “Utopia ou o Lugar que Não Existe”, acabou ofuscada por certa falta de ousadia da parte do coreógrafo, segundo o qual a utopia na dança está no “belo”. Em busca do que supõe ser essa qualidade, ele propõe uma movimentação que não desafia o elenco em nada e segue uma dramaturgia que se escora basicamente em figurino (preto e branco) e cenografia (com diferentes mapas de cores e um piano ao fundo de onde era executada a trilha de Camargo Guarnieri [1907-1993]), esvaziando a tentativa de se levantar alguma questão sobre uma possibilidade de se construir esse tal “lugar que não existe”.

Para completar, a peça estreou justamente na semana em que o Brasil foi varrido por ondas de protesto. Se por um lado Bongiovanni teve a sorte de “sacar” um certo desalento que se traduziu nas tais manifestações, ele não teve tempo de responder coreograficamente aos debates surgidos a partir delas sobre ideologia e ativismo. Com isso, sua visão bela (porém entristecida) da utopia acabou descolada da realidade por um timing ruim, o que é uma pena.

Fabiana Ikehara e Nielson Souza em "Por Vos Muero". Crédito: Silvia Machado