sexta-feira, 13 de setembro de 2013

O museu vivo de Trisha Brown

Trisha Brown, 2008.
Crédito: Lourdes Delgado
Em 2010, tive a oportunidade de conversar pessoalmente com Trisha Brown durante a Bienal de Lyon. Conversar, na verdade, é modo de dizer. A mulher de cabeça branca diante de mim parecia distante da imagem questionadora dos anos 1970 e 1980 que eu tinha me acostumado a ver em vídeo. Ela falou pouco - bem pouco, na verdade - e, na maioria das vezes, tinha suas frases completadas por uma de suas bailarinas, prontamente localizada ao lado para qualquer intervenção.

Não surpreendeu, portanto, quando Trisha, 76, anunciou, no fim do ano passado, que se afastaria das atividades da companhia que leva seu nome por motivo de saúde. Por outro lado, não deixa de ser espantoso que uma das quatro obras de sua turnê da despedida, programada para rodar o mundo até o fim de 2015 e que passa por São Paulo neste fim de semana, traga uma de suas duas últimas peças, feita em... 2011!

Tudo leva a crer que a criação dessa última leva de trabalhos contou em boa parte com a colaboração de seus intérpretes-criadores. Mas, afinal, que mal há nisso se essa lógica que criação já a norteava desde os anos 1960 quando participava da Judson Church? É esse elenco que, mergulhado na lógica de pensamento de Trisha, tem a missão de fazer seu legado continuar mesmo sem ela.

É que, simplesmente, não dá para esquecer o que ela fez pela arte contemporânea quando se tornou uma das primeiras pessoas a conseguir organizar um pensamento em torno de questões inesgotáveis até hoje. São reflexões sobre a relação entre espaço e ambiente, imprevisibilidade e livre-arbítrio, e, acima de tudo, sobre a capacidade de qualquer corpo de produzir de conhecimento.     
A turnê que segue até 2015 apresenta as obras dela criadas para o palco, o que vem fazendo a companhia mergulhar em um intenso processo de revirar o baú para remontar uma trajetória prolífica de mais de cem trabalhos. Depois, ela deve se dedicar aos site-specifics (que são as verdadeiras obras-mestras do repertório).

Com isso, o grupo acaba por se transformar em um verdadeiro museu de Trisha, já que ela manifestou o desejo de que peças de outros coreógrafos não sejam incorporadas ao repertório. Mas qual será o prazo de validade de um projeto como esse?
 A batata quente está nas mãos de duas das mais longevas bailarinas da coreógrafa: Diane Madden e Carolyn Lucas, que assumiram o posto de diretoras artísticas associadas. Por ocasião da turnê, entrevistei Madden por e-mail para o jornal Metro. Para ela, não são só as questões levantadas por Trisha que ainda são inesgotáveis, mas a própria obra dela. "Ainda há muitos trabalhos serem redescobertos em novos contextos", diz. Confira:


Cena de "Les Yeux et L´Âme" (2011),
uma das duas últimas obras de Trisha
Parece que vocês têm trabalhado mais do que nunca desde o afastamento de Trisha Brown. O que mudou mais na rotina da companhia?
Reuniões de planejamentos futuros! Estamos gastando bem mais tempo pensando e conversando sobre o que estamos fazendo e o porquê de tudo isso.
A agenda da companhia demonstra uma grande preocupação com questões de memória. Há várias masterclasses com membros do grupo, além de remontagens de obras de Trisha com estudantes. Quão importante isso é para vocês?A disseminação dos conceitos coreográficos de Trisha por meio de remontagens estudantis sempre foram grande parte do que fazemos. Isso ajuda a desenvolver nosso público - os bailarinos e artistas que estudam hoje são o público de amanhã. Além da nossa memória corporal, nós usamos também um extenso arquivo de vídeos, filmes, desenhos e anotações. No futuro, tudo isso será interativo, o que levará o trabalho de Trisha a um público mais amplo.

Em um artigo no "The New York Times", o crítico-chefe de dança Alastair Macaulay escreveu que tinha a sensação de que algumas remontagens de obras de Trisha haviam "silenciado". Quão difícil é manter vivo um repertório tão intenso quanto o de Trisha?É bem difícil, mas estamos fazendo isso há 30 anos e topamos o desafio! Quanto mais fazemos, mais entendemos as questões essenciais em torno de manter a integridade das ideias de Trisha. Alastair deve levar em conta que a percepção dele é em relação à própria lembrança que ele tem de ver o trabalho pela primeira vez.

O que mantém o trabalho dela impactante para as novas gerações que, antes de verem suas obras, já entraram em contato com várias de suas ideias por meio da arte contemporânea?O artesanato coreográfico que é a obra de Trisha é a pedra fundamental da performance contemporânea. O trabalho dos artistas de hoje e o ponto de vista do público são renovados quando encontram essas relevantes "regras do jogo" coreógrafico que são o legado de Trisha.

Você poderia apontar a lição mais marcante que aprendeu com ela enquanto era bailarina?A prática da improvisação me permite encarar a repetição de uma coreografia em vários níveis de consciência. Enquanto danço, faço um monitoramento profundo, interno e sem juízo de valor do que está acontecendo ao meu redor ao mesmo tempo que tenho uma consciência precisa da forma específica e intrincada [do movimento] que conquistei em incontáveis horas de estudo e prática. Essa é a experiência que tenho ao dançar trabalhos de Trisha e é o que uso para dirigi-los.

A companhia não tem um prazo de validade como a de Merce Cunningham (1919-2009). Então por que chamar esta turnê de "turnê da despedida"? Vocês têm planos de montar trabalhos de novos coreógrafos após 2015?
Estamos chamando esta turnê especificamente de "Despedida do Palco", celebrando os trabalhos de Trisha feitos para a caixa cênica. De acordo com o desejo dela, não haverá novos trabalhos de novos coreógrafos. Ainda há muitos trabalhos de Trisha (ela fez cem danças!) a serem redescobertos em novos contextos.

Vocês estão planejando outra visita ao Brasil durante a turnê?Sim! Nesta visita de agora estamos visitando locais e nos reunindo para planejarmos o retorno de outros trabalhos de Trisha. Fique com olhos e ouvidos bem abertos - nós voltaremos!

Serviço
O quê: Trisha Brown Dance Company
Onde: Teatro Alfa (r. Bento Branco de Andrade Filho, 722, tel.: 5693-4000)
Quando: Hoje, às 21h30, amanhã às 20h e domingo, às 18h
Quanto: De R$ 40 a R$ 180