sábado, 18 de agosto de 2007

Texto publicado originalmente em 20/07/07, no Jornal O POVO


O toque de Misha


Pouco importava se a coreografia era boa ou ruim. Mikhail Baryshnikov estaria lá e pronto. À frente da companhia norte-americana Hell´s Kitchen Dance, o bailarino russo de 59 anos provou para o público brasileiro o porquê de ainda ser considerado um dos últimos mitos da dança mundial. Na última quarta-feira, abrindo o 25º Festival de Dança de Joinville, em Santa Catarina, ele demonstrou ter o toque de Midas; Misha, como é conhecido, carrega consigo a rara capacidade de transformar qualquer movimento em arte. Daí para frente, a qualidade do espetáculo passa para o segundo plano com a certeza de se encontrar ali algo pronto a se comunicar e a emocionar o público.
Foi essa certeza que fez esgotar, em poucas horas, os ingressos para as quatro apresentações do bailarino do Brasil. Hoje é a vez do Rio de Janeiro conferir o espetáculo que prevê três coreografias. Nos próximos dias 24 e 25, são os paulistas que assistem a ele e a sua nova trupe. Após uma carreira consagrada em companhias como a Bolshoi Ballet e o American Ballet Theater, da qual chegou a ser diretor artístico, o bailarino deixou, há mais de 20 anos, o perfeito domínio do balé clássico para apostar nos instigantes questionamentos da dança contemporânea e se fazer, assim, um artista completo.
Um dia antes da apresentação em Joinville, Misha ensaiava no palco do Centreventos e antevia seus quase cinco mil espectadores na noite seguinte. "Estou me sentindo o Mick Jagger", brincou ele em uma entrevista coletiva, numa referência ao sexagenário vocalista da banda Rolling Stones. De óculos, com calça moletom caindo pelos quadris e tênis All Star desamarrado nos pés, ele se punha na frente do palco para o ensaio do trio de pequenos bailarinos da Escola do Teatro Bolshoi no Brasil que substituiriam uma mudança de última hora no programa da apresentação.
Enquanto isso, nos bastidores do teatro, o zum-zum-zum corria todo em inglês. Um dos filhos de Baryshnikov, Peter, conversava com algumas alunas da Escola do Bolshoi. "Você também dança?" "Sim" "O que, também dança contemporânea?" "É", afirmou ele, dando mais bola para o papo com as novas amigas. De volta ao palco, o bailarino russo já dançava cercado por jornalistas.
Perfeccionista, ele pedia para ajeitarem o contraste da projeção com a qual contracena. Humano, ele chegou a errar um trecho de uma coreografia de conjunto. Ao cair em si, soltou um sorriso e continuou com o passo correto até o momento em que, achando ser o suficiente, parou a música, fez um gesto de corte no pescoço, agradeceu a quem estava ali e sumiu nas coxias, deixando à deriva a jornalista de TV que tentava gravar um trecho de sua reportagem tendo o bailarino como pano de fundo. Tudo assim, em poucas palavras, com a reserva que lhe é típica e que só permitiu uma única entrevista coletiva no Brasil.
Desde o ano passado, a mais nova empreitada de Baryshnikov está em utilizar seu nome para projetar jovens bailarinos e coreógrafos de dança contemporânea com a Hell´s Kitchen Dance. Acontece que, nesse processo, é impossível ele próprio não ficar em evidência, o que é admitido pelos próprios integrantes do grupo. “Isso tudo é uma troca. Ele está nos ajudando a nos desenvolvermos, viajando todo o mundo e fazendo o que amamos de uma forma bastante midiatizada”, pontua William Briscoe, solista da coreografia "Rom", de Aszure Barton, na qual apresenta um apuro técnico refinado e desponta, de fato, como uma promessa.
As outras peças, "Years Later", de Benjamin Millepied, e "Come In", também de Aszure, correm atrás do famoso bailarino ao tratarem exatamente da relação dele com a sua carreira e com o tempo. Exploram, com isso, a incrível capacidade dele de fazer arte com um corpo já envelhecido, mas profundamente maduro. Maturidade essa que falta em um momento ou outro nos trabalhos, mas é compensada pelo pela força cênica apresentada.
Na primeira coreografia, Misha brinca com imagens projetadas de seu passado de bailarino clássico, ainda bem jovem, e contracena consigo próprio numa tentativa de mostrar que agora ele é bem maior do que aquilo que já foi. Já na segunda, a delicadeza e a doçura enchem o palco numa reverência ao que Baryshnikov foi e ainda é. A cena final diz muito do que o bailarino representa para o grupo. Todos caminham juntos pelo palco, até que Misha pára no meio enquanto os outros prosseguem. Teria sido ele deixado para trás? Que nada. Segundos depois, ele vira as costas para a trupe, que também se vira na direção dele, e passa caminhar e a ser acompanhado pelos demais. Essa é a metáfora para a própria vida do artista. Perto dos 60 anos, sem previsão de quando o corpo vai impedi-lo de continuar a carreira, ele mostra, sim, ainda ser um artista que vale a pena ser seguido.