domingo, 6 de julho de 2014

A vida como ela é (no estúdio de balé)

Kelly Bishop (esq.) e Sutton Foster vivem
sogra e nora em "Bunheads" | Divulgação
É uma pena que "Bunheads" tenha durado apenas uma temporada, exatamente a que estreou hoje, sem muito alarde, na desprestigiada faixa do meio-dia, no canal Sony.

Produzida em 2012 pelo canal americano ABC Family, a série conquistou um público cativo nos Estados Unidos, mas em número insuficiente para engatilhar uma nova leva de episódios. Muitos jornalistas especialistas em TV apontaram que essa foi uma das maiores injustiças da temporada televisiva do ano passado. Até uma campanha de arrecadação de fundos no Kickstarter, que não vingou, foi cogitada para evitar o fim precoce da produção.

Falo tudo isso só para ficar claro que não é corporativismo quando digo que "Bunheads" é uma das melhores coisas já filmadas com o balé como pano de fundo. É isso que faz a série não ser totalmente um autoplágio do maior sucesso da criadora Amy Sherman-Palladino, a série "Gilmore Girls".

As falas rápidas, recheadas de referências pop e autodepreciação continuam lá, assim como personagens excêntricos e uma protagonista quase idêntica à Lauren Graham. Ela é Michelle Simms (Sutton Foster), showgirl que abandona Las Vegas – e o sonho de ser bailarina profissional – para se casar com um admirador, com quem se muda para a pequena cidade de Paradise, onde ele mora com a mãe, Fanny Flowers (Kelly Bishop), dona de um... estúdio de balé. Apesar de viverem às turras, as duas encontram na dança um elo e tentam aprender a conviver uma com a outra.

Sherman-Palladino tem um talento especial para misturar drama e comédia, bem como para equilibrar as várias tramas dos personagens centrais. Sim, é Michelle quem conduz a narrativa, mas parte essencial da série está na dinâmica do quarteto de alunas adolescentes, cada uma incorporando os arquétipos de qualquer escola de dança: a talentosa de nariz empinado, a gordinha inspirada que dança com a alma, a insegura e problemática, a que nem gosta tanto daquilo mas dança para ficar perto das amigas...

Existem vários filmes que tematizam o lado mais profissional do balé, mas, em geral, essa é uma abordagem idealizada e completamente distante do dia a dia de uma sala de aula de dança. "Bunheads" se diferencia por se comunicar de verdade, de igual para igual, com os sonhos, as alegrias e as frustrações de milhares de garotas que calçam as sapatilhas diariamente mas, provavelmente, vão se tornar dentistas, corretoras de imóveis, jornalistas... E faz tudo isso sem cair no estereótipo barato, algo difícil quando o modo de narrar, como o escolhido aqui, é propositalmente artificial e exagerado.

Além disso, há uma boa escolha das atrizes, que dançam com o nível e a qualidade técnica das estudantes que são na vida real (ou seja, nada exageradamente bom, nada exageradamente ruim), com boas coreografias originais de Marguerite Derricks (de "So You Think You Can Dance"), pensadas justamente para esse bailarino em formação, além de um roteiro com uma precisão impecável nos detalhes técnicos do balé, recheado de referências e anedotas que eu me veria fazendo e que, de tão específicas, soam quase como piada interna – o que, na real, só ajuda a criar intimidade e carinho pela série.

"Bunheads" me representa. Representa as diferentes fases dos 20 anos que passei dentro da Academia de Ballet Regina Passos. E eu daria de bom grado alguns tostões para me emocionar vendo um pouco mais disso na ficção.

Os 18 episódios da primeira e única temporada estão sendo exibidos no Sony em maratonas de quatro episódios seguidos, a partir do meio-dia, todos os domingos, dublados em português. Ainda não há reprises agendadas.

Em primeiro plano, da esq. para a dir., Julia Goldani Telles, Bailey Buntain, Emma Dumont e Kaitlyn Jenkins | Divulgação

P.S.: Tá vendo a garota de moletom aí acima? Ela vive Sasha, uma das alunas mais inspiradas de Fanny Flowers em "Bunheads". E a atriz que a encarna, imagine só, nasceu no Rio! Julia Goldani Telles é filha de mãe brasileira e começou a estudar balé ainda no país, de onde se mudou aos seis anos para os Estados Unidos, onde continuou o aprendizado na School of American Ballet. Encontrei uma matéria ótima da BBC Brasil em que a atriz fala um pouco dessa relação com nossa pátria. Dá pra ler aqui.