quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Aniversário nas telas e nos palcos *

Cena de ‘Por 7 Vezes’, nova criação do coreógrafo goiano
Henrique Rodovalho | Crédito Divulgação
Ao longo dos últimos 25 anos, a goiana Quasar Cia. de Dança se firmou dentro e fora do Brasil com trabalhos baseados em uma mescla inteligente de bom humor e movimentos fragmentados.
Essa trajetória, cunhada pelas criações do coreógrafo Henrique Rodovalho, culmina agora em “Por 7 Vezes”, que estreia neste fim de semana em duas únicas apresentações no Teatro Alfa, em São Paulo.

O novo espetáculo busca refletir o amadurecimento do grupo. O número presente no título é uma referência à quantidade de coreografias apresentadas no trabalho. Cada uma remete a uma parte do corpo, representado de cima a baixo por olhos, boca, braços, coração, vísceras, sexo e pernas.“Parto do meu estilo de coreografar, a partir do corpo fragmentado, e lido com o corpo em pedaços que se movem quase independentemente”, diz Rodovalho.

As sete coreografias vão gerar sete capítulos de um filme que a Quasar quer lançar no ano que vem dentro das comemorações do Jubileu de Prata do grupo. A ideia é que cada trecho seja registrado por um cineasta diferente. Segundo Rodovalho, Tata Amaral (“Hoje”) e Maria de Medeiros (“Repare Bem”) são os dois primeiros nomes confirmados na empreitada, uma coprodução com a França.
“Cada um vai ter todo o controle para colocar seu olhar sobre a obra. Isso é o que me importa mais, ver como seria o espetáculo através do olhar de outros artistas”, completa ele.

Em paralelo a esse projeto, a diretora Marcela Borela registrou o processo criativo de “Por 7 Vezes” no documentário “Corpo Aberto”, que está à procura de recursos para sua finalização e também tem previsão de estreia para 2014.

Serviço
O quê: Estreia de "Por 7 Vezes", com a Quasar Cia. de Dança
Onde: Teatro Alfa (r. Bento Branco de Andrade Filho, 722, tel.: 5693-4000)
Quando: Dia 5/10, às 20h, e dia 6/10, às 18h
Quanto: De R$ 40 a R$ 80

* Texto publicado originalmente na edição de 3/10/13 do Jornal Metro - edição São Paulo.


sexta-feira, 13 de setembro de 2013

O museu vivo de Trisha Brown

Trisha Brown, 2008.
Crédito: Lourdes Delgado
Em 2010, tive a oportunidade de conversar pessoalmente com Trisha Brown durante a Bienal de Lyon. Conversar, na verdade, é modo de dizer. A mulher de cabeça branca diante de mim parecia distante da imagem questionadora dos anos 1970 e 1980 que eu tinha me acostumado a ver em vídeo. Ela falou pouco - bem pouco, na verdade - e, na maioria das vezes, tinha suas frases completadas por uma de suas bailarinas, prontamente localizada ao lado para qualquer intervenção.

Não surpreendeu, portanto, quando Trisha, 76, anunciou, no fim do ano passado, que se afastaria das atividades da companhia que leva seu nome por motivo de saúde. Por outro lado, não deixa de ser espantoso que uma das quatro obras de sua turnê da despedida, programada para rodar o mundo até o fim de 2015 e que passa por São Paulo neste fim de semana, traga uma de suas duas últimas peças, feita em... 2011!

Tudo leva a crer que a criação dessa última leva de trabalhos contou em boa parte com a colaboração de seus intérpretes-criadores. Mas, afinal, que mal há nisso se essa lógica que criação já a norteava desde os anos 1960 quando participava da Judson Church? É esse elenco que, mergulhado na lógica de pensamento de Trisha, tem a missão de fazer seu legado continuar mesmo sem ela.

É que, simplesmente, não dá para esquecer o que ela fez pela arte contemporânea quando se tornou uma das primeiras pessoas a conseguir organizar um pensamento em torno de questões inesgotáveis até hoje. São reflexões sobre a relação entre espaço e ambiente, imprevisibilidade e livre-arbítrio, e, acima de tudo, sobre a capacidade de qualquer corpo de produzir de conhecimento.     
A turnê que segue até 2015 apresenta as obras dela criadas para o palco, o que vem fazendo a companhia mergulhar em um intenso processo de revirar o baú para remontar uma trajetória prolífica de mais de cem trabalhos. Depois, ela deve se dedicar aos site-specifics (que são as verdadeiras obras-mestras do repertório).

Com isso, o grupo acaba por se transformar em um verdadeiro museu de Trisha, já que ela manifestou o desejo de que peças de outros coreógrafos não sejam incorporadas ao repertório. Mas qual será o prazo de validade de um projeto como esse?
 A batata quente está nas mãos de duas das mais longevas bailarinas da coreógrafa: Diane Madden e Carolyn Lucas, que assumiram o posto de diretoras artísticas associadas. Por ocasião da turnê, entrevistei Madden por e-mail para o jornal Metro. Para ela, não são só as questões levantadas por Trisha que ainda são inesgotáveis, mas a própria obra dela. "Ainda há muitos trabalhos serem redescobertos em novos contextos", diz. Confira:


Cena de "Les Yeux et L´Âme" (2011),
uma das duas últimas obras de Trisha
Parece que vocês têm trabalhado mais do que nunca desde o afastamento de Trisha Brown. O que mudou mais na rotina da companhia?
Reuniões de planejamentos futuros! Estamos gastando bem mais tempo pensando e conversando sobre o que estamos fazendo e o porquê de tudo isso.
A agenda da companhia demonstra uma grande preocupação com questões de memória. Há várias masterclasses com membros do grupo, além de remontagens de obras de Trisha com estudantes. Quão importante isso é para vocês?A disseminação dos conceitos coreográficos de Trisha por meio de remontagens estudantis sempre foram grande parte do que fazemos. Isso ajuda a desenvolver nosso público - os bailarinos e artistas que estudam hoje são o público de amanhã. Além da nossa memória corporal, nós usamos também um extenso arquivo de vídeos, filmes, desenhos e anotações. No futuro, tudo isso será interativo, o que levará o trabalho de Trisha a um público mais amplo.

Em um artigo no "The New York Times", o crítico-chefe de dança Alastair Macaulay escreveu que tinha a sensação de que algumas remontagens de obras de Trisha haviam "silenciado". Quão difícil é manter vivo um repertório tão intenso quanto o de Trisha?É bem difícil, mas estamos fazendo isso há 30 anos e topamos o desafio! Quanto mais fazemos, mais entendemos as questões essenciais em torno de manter a integridade das ideias de Trisha. Alastair deve levar em conta que a percepção dele é em relação à própria lembrança que ele tem de ver o trabalho pela primeira vez.

O que mantém o trabalho dela impactante para as novas gerações que, antes de verem suas obras, já entraram em contato com várias de suas ideias por meio da arte contemporânea?O artesanato coreográfico que é a obra de Trisha é a pedra fundamental da performance contemporânea. O trabalho dos artistas de hoje e o ponto de vista do público são renovados quando encontram essas relevantes "regras do jogo" coreógrafico que são o legado de Trisha.

Você poderia apontar a lição mais marcante que aprendeu com ela enquanto era bailarina?A prática da improvisação me permite encarar a repetição de uma coreografia em vários níveis de consciência. Enquanto danço, faço um monitoramento profundo, interno e sem juízo de valor do que está acontecendo ao meu redor ao mesmo tempo que tenho uma consciência precisa da forma específica e intrincada [do movimento] que conquistei em incontáveis horas de estudo e prática. Essa é a experiência que tenho ao dançar trabalhos de Trisha e é o que uso para dirigi-los.

A companhia não tem um prazo de validade como a de Merce Cunningham (1919-2009). Então por que chamar esta turnê de "turnê da despedida"? Vocês têm planos de montar trabalhos de novos coreógrafos após 2015?
Estamos chamando esta turnê especificamente de "Despedida do Palco", celebrando os trabalhos de Trisha feitos para a caixa cênica. De acordo com o desejo dela, não haverá novos trabalhos de novos coreógrafos. Ainda há muitos trabalhos de Trisha (ela fez cem danças!) a serem redescobertos em novos contextos.

Vocês estão planejando outra visita ao Brasil durante a turnê?Sim! Nesta visita de agora estamos visitando locais e nos reunindo para planejarmos o retorno de outros trabalhos de Trisha. Fique com olhos e ouvidos bem abertos - nós voltaremos!

Serviço
O quê: Trisha Brown Dance Company
Onde: Teatro Alfa (r. Bento Branco de Andrade Filho, 722, tel.: 5693-4000)
Quando: Hoje, às 21h30, amanhã às 20h e domingo, às 18h
Quanto: De R$ 40 a R$ 180

sexta-feira, 19 de julho de 2013

Duas boas escolhas

Elenco oprimido de "Sra. Margareth" todo juntinho. Crédito: Divulgação
Há algo de muito animador no programa que a Cisne Negro Cia. de Dança apresentou no fim de junho no Teatro Sérgio Cardoso. Enxuto na medida certa para uma temporada popular, ele soube evidenciar o que o grupo tem de melhor: a versatilidade e a qualidade técnica de seus competentíssimos bailarinos.

A abertura ficou por conta de “Revoada”, de Gigi Caucileanu, criada em 2007 para celebrar os 30 anos da trupe fundada por Hulda Bittencourt. De cara, a peça mostra a habilidade do coreógrafo em dialogar de forma clara – e eficiente – com o propósito da encomenda. Isso se vê logo no título – uma referência explícita ao nome da companhia – e nos tutus vermelhos do figurino – releitura atualizada do corpo de baile do clássico balé de repertório “O Lago dos Cisnes”, do qual o Cisne Negro é um dos personagens centrais.

A eficácia conquistada por Caucileanu está também presente na trilha escolhida: excertos de “Pássaro de Fogo” e “Fireworks”, ambas de Igor Stravinski (1882-1971), que exaltam não apenas outro tipo de ave, mas, principalmente, outro tipo de ação diferente da do balé. É como se o coreógrafo quisesse apontar a evolução do grupo, que nasceu dentro do clássico, bateu asas e se transformou em algo maior, firmando-se como um conjunto contemporâneo sólido.

Isso se vê na movimentação, que inverte papéis e tira os homens do tradicional posto de partner, em duos, e os faz apresentar um virtuosismo e um protagonismo costumeiramente relegados às mulheres no balé. Apesar dessa escolha, a peça ainda segue um lirismo próprio do clássico – que o grupo nunca abandonou enquanto técnica. Ele ganha ainda mais beleza quando executado com este elenco afiado (mas que não perderia nada se afinasse um tantinho mais a sincronia).

“Revoada” fez um contraste positivo com a estreia nacional de “Sra. Margareth”, de Barak Marshall. Baseado na dança-teatro, o trabalho é um recorte de “Monger”, de 2008, primeira criação do coreógrafo desde que deixou o posto de residente na prestigiada Batsheva Dance Company, em Israel. Não há exatamente uma narrativa a ser contada, mas o argumento põe os bailarinos como funcionários presos em um porão por uma patroa abusiva.


A movimentação de Marshall é vigorosa como a de Caucileanu, mas segue uma linha mais pop que conversa muito bem com uma geração que cresceu vendo divas como Madonna e Beyoncé. Esse, aliás, é o melhor aspecto da obra: saber fazer-se impactar em um público que não está acostumado a ver dança, mas de forma inteligente, com uma dramaturgia equilibrada capaz de manter a peteca no ar durante todo o tempo de duração. Com isso, "Sra. Margareth" se afirma como a melhor estreia do Cisne Negro em anos.

quarta-feira, 17 de julho de 2013

Queremos os étoiles!

#Vempracá, Alina Somova, vem! Crédito: Divulgação

Depois de um fraco giro pelo Brasil em 2011, o Balé do Teatro Mariinski (antigo Kirov) volta ao país em novembro do próximo ano dentro da temporada 2014 do Theatro Municipal de São Paulo, anunciada ontem pelo diretor artístico John Neschling. O programa, no entanto, não foi revelado. A única certeza é que a trilha será conduzida pela própria Orquestra Sinfônica Municipal. 

Fico naturalmente alvoroçada com qualquer turnê brasileira de companhias internacionais históricas, mas o que os russos apresentaram por aqui há dois anos me faz ver a nova visita com desconfiança. Aproveitando a temporada de protestos pelo Brasil, começo já por aqui uma campanha: queremos os étoiles! 

Foi frustrante ver o terceiro elenco do grupo apresentado como astros da dança do leste europeu quando, a olhos vistos, eles simplesmente NÃO ERAM, fazendo vir abaixo o clichê (que perdura mais de 20 anos após o fim da URSS) de que o Kirov representa a nata do balé clássico mundial ao lado de seu conterrâneo Bolshoi.

Em qualquer temporada dessas, pagamos bem caro pelos ingressos. Da última vez, foi algo em torno de R$ 300, preço equivalente ao das turnês nos Estados Unidos e na Europa. Acho que merecemos ter o mesmo nível apresentado nesses lugares, não?

A outra demanda da campanha é: esqueçam "O Lago dos Cisnes"! É óbvio que esse é um clássico inegável e que é uma delícia assisti-lo com a companhia para a qual Petipa e Ivanov o criaram, mas ele esteve em TODAS as outras quatro turnês do grupo pelo Brasil. Acho saudável o elenco se provar em outros desafios, ainda mais quando se tem um público ainda muito carente de formação.

Quebra-Nozes com sotaque paulistano
Outra novidade da temporada 2014 do Theatro Municipal é uma montagem do clássico "O Quebra-Nozes", em dezembro, pelo Balé da Cidade de São Paulo. Não tenho registro da companhia ter montado tal peça depois da revolução que a assolou nos anos 1970, quando abandonou a faceta de corpo de baile clássico para defender um repertório exclusivamente moderno e contemporâneo. 

Não dá para saber, portanto, esta será uma criação ou remontagem de uma coreografia já existente. De qualquer modo, será interessante ver que leitura o grupo dará para a história da noite de Natal inesquecível da menina Clara. O que se sabe é que a peça contará com a Orquestra Experimental de Repertório na execução da trilha de Tchaikovski (1840-1893). 

Em 2014, o Balé sobe ainda outras três vezes no palco do Municipal, duas delas com acompanhamento orquestral, mas não foram reveladas as peças que devem compor os programas. 

terça-feira, 16 de julho de 2013

Enfim, maduros

Nielson Souza e Morgana Cappellari em
"Peekaboo". Crédito: Marcela Benvegnu 
Quando a São Paulo Companhia de Dança foi criada, em 2008, seu corpo de baile era formado basicamente pela nata de algumas das melhores escolas de balé clássico espalhadas pelo país. Essa escolha entrava em choque com o estilo de trabalho buscado desde então, voltado, em sua maior parte, a peças modernas e contemporâneas.

Passados cinco anos, essa equação se inverteu. Em sua primeira temporada de estreias de 2013, o grupo demonstrou ter conquistado definitivamente maturidade para defender as obras que ostenta em seu repertório.    

O que se viu ao longo de três semanas de junho no teatro Sérgio Cardoso foram bailarinos que chegaram profissionalmente crus à companhia, com pouco ou nenhum histórico de trabalho anterior, e que tomaram, enfim, ciência de suas possibilidades. Mais importante: cresceram juntos, fazendo com que esse legado não seja apenas individual, mas de todo o grupo, que começa a forjar assim uma identidade e uma assinatura a despeito da grande renovação de profissionais típica desse campo de trabalho.

Com isso, nomes como Fabiana Ikehara, Morgana Cappellari e Yoshi Suzuki ajudaram a fazer com que o repertório contemporâneo da companhia subisse degraus em densidade e camadas de leitura. O trânsito nessa área ficou tão mais familiar que foi o balé que sobrou na jogada: nunca o grupo falhou tanto quanto dessa vez em “Theme and Variations”, peça de verve extremamente clássica de George Balanchine (1984-1983).

Outra observação é que, a despeito dessa maturidade conquistada, o elenco precisa olhar com mais cuidado para suas peças mais antigas e trabalhar, principalmente, a sincronia, como em “Bachiana no 1” (2012), de Rodrigo Pederneiras, que carece de uniformização nas intenções dos movimentos entre todos do conjunto – algo já visto antes e que, aparentemente, se perdeu no meio do caminho.
Das três estreias da temporada – todas contemporâneas –, duas delas partiram de coreógrafos com os quais os bailarinos já haviam tido contato, o que possibilitou um aprofundamento em torno de suas linguagens.

A remontagem de “Por Vos Muero” (1996), de Nacho Duato, peca por carregar certo cheiro de mofo na cenografia e no figurino. Sua movimentação, no entanto, sabe fazer um diálogo importante com a passionalidade da trilha, baseada em música antiga espanhola, e acaba bem defendida pela trupe. O desempenho não surpreende de todo, já que uma das remontagens mais bem resolvidas da companhia até então havia sido justamente a de “Gnawa” (2005), também de Duato.

Apesar disso, a mencionada maturidade do grupo fica mesmo evidente na inédita “Peekaboo”, de Marco Goecke. O grupo, que já havia lidado com o vocabulário de movimentos muito específico do coreógrafo alemão na remontagem de “Supernova”, em 2010, pôde agora mergulhar ainda mais na linguagem dele nesta criação original para a SPCD. Embalada pela “Simple Symphony”, de Benjamin Britten (1913-1976), “Peekaboo” é mais densa que “Supernova” e só funciona a partir de um exaustivo trabalho de precisão e refinamento dos gestos frenéticos e ágeis propostos por Goecke.

Inspirada pela brincadeira de esconder e aparecer típica das crianças, a peça faz uso inteligente da trilha de Britten, composta por ele ainda na infância, e tem seu momento mais belo justamente no ponto menos “goeckiano”, em que a respiração intencionalmente ofegante dos bailarinos quase sufoca a trilha enquanto eles estão parados no mesmo lugar, movimentando apenas os braços, sob uma penumbra, evocando o desalento da solidão de quem ainda não foi “achado” na brincadeira.

Diante desse resultado, a primeira parceria da SPCD com Luiz Fernando Bongiovanni, “Utopia ou o Lugar que Não Existe”, acabou ofuscada por certa falta de ousadia da parte do coreógrafo, segundo o qual a utopia na dança está no “belo”. Em busca do que supõe ser essa qualidade, ele propõe uma movimentação que não desafia o elenco em nada e segue uma dramaturgia que se escora basicamente em figurino (preto e branco) e cenografia (com diferentes mapas de cores e um piano ao fundo de onde era executada a trilha de Camargo Guarnieri [1907-1993]), esvaziando a tentativa de se levantar alguma questão sobre uma possibilidade de se construir esse tal “lugar que não existe”.

Para completar, a peça estreou justamente na semana em que o Brasil foi varrido por ondas de protesto. Se por um lado Bongiovanni teve a sorte de “sacar” um certo desalento que se traduziu nas tais manifestações, ele não teve tempo de responder coreograficamente aos debates surgidos a partir delas sobre ideologia e ativismo. Com isso, sua visão bela (porém entristecida) da utopia acabou descolada da realidade por um timing ruim, o que é uma pena.

Fabiana Ikehara e Nielson Souza em "Por Vos Muero". Crédito: Silvia Machado

terça-feira, 7 de maio de 2013

Altos e baixos de um recém-nascido


O Festival O Boticário na Dança encerrou ontem em São Paulo. Consegui ver todos os espetáculos, então aproveito agora para fazer um apanhado dos altos e baixos do evento. Lá vai.

Sobe
- A curadoria: Ao bancar a vinda ao Brasil de quatro companhias internacionais completamente inéditas pelas bandas de cá, todas com trabalho sedimentado a partir dos anos 2000, a curadoria do alemão Dieter Jaenick (ex-Carlton Dance) demonstra uma ousadia aparentemente abandonada pelas produtoras que costumam trazer grandes grupos estrangeiros e se acostumaram a apresentar repetecos não só de grupos, mas até mesmo de programas, como se quisessem reprisar o sucesso obtido em turnês anteriores. Sabemos, porém, que a coisa não funciona bem assim e nada garante público.

- O preço dos ingressos: Não surpreende que o Festival tenha iniciado com todas as apresentações com ingressos esgotados. Afinal, pagar R$ 20 para ver uma produção exigente do ponto de visto logístico, com cenários robustos e elenco vasto, não é nem razoável, é barato mesmo. E começar tudo com garantia de casa cheia – e de filas de espera longuíssimas – dá um gostinho bem saboroso na boca.

- A opção por organizar um festival: Tenho um chute. Pelo que vi nestes últimos dias, organizar apresentações encarrilhadas dia após dia, usando um mesmo bombardeio de divulgação para todas as atrações, é mais eficiente para a formação de público novo do que a organização de temporadas. Claro que os habitués da cena da dança contemporânea de São Paulo estavam por lá, mas o que marcou foi ver mesmo muita cara nova, e em repetidos dias. Ponto para o ingresso barato e a divulgação.

Desce
- Privilégio da Shen Wei: Não deu pra entender muito bem por que a Shen Wei Dance Arts foi a única contemplada com dois dias de apresentação. Ok, o programa foi interessante – uma dobradinha com "A Sagração da Primavera" e "Folding" –, dando vazão a aspectos completamente distintos de uma mesma companhia, com a primeira peça extremamente virtuosa e a outra com uma dramaturgia mais bem trabalhada e emocionante. O problema é que faltou a ela o impacto que uma obra como a de Hofesh Schechter teria para abrir os trabalhos.

- Encerramento numa segunda (!): Também não deu pra entender de jeito nenhum por que resolveram por fim ao festival numa segunda-feira – ainda mais quando o programa de encerramento seria o mais longo de todo o festival, numa sequência da Quasar e do Grupo de Rua de Niterói, cada um com trabalhos de 60 minutos de duração. A perspectiva de fim para depois da meia-noite, quando o transporte público fica escasso, fez mais da metade do público se mandar antes da hora, no meio do espetáculo, o que é sempre péssimo. Além disso, perdeu-se a oportunidade de fechar de forma apoteótica, como uma grande festa. Sair do Auditório vendo aquele monte de poltronas já vazias deixou um gostinho ruim.

- Grupo de Rua de Niterói: O trabalho mais desafiador de todo o Festival foi também o mais mal programado. Apesar de seguir a linhagem da popular street dance, "H3" não é uma peça de simples absorção, que causa empatia de cara. Ela demanda tempo e abertura do público, algo que só se consegue numa intricada negociação entre artista e plateia que dificilmente se realizaria às 22h30 de uma segunda-feira, hora em que a peça começou, logo após "No Singular", trabalho de verve muito pop da Quasar. Acabou que uma coisa não combinou com a outra, apesar de os dois espetáculos funcionarem bem (mas cada um no seu quadrado).   

sábado, 4 de maio de 2013

"É muito caótico fazer dança", diz Hofesh Schechter

O israelense Hofesh Schechter era um cara dividido entre a música e a dança até resolver unir as duas paixões no início dos anos 2000 com a fundação de sua própria companhia, sediada em Londres. "Political Mother" é a síntese da fusão feita pelo coreógrafo entre essas duas linguagens. Criado em 2010, o espetáculo foi atração de ontem da edição paulistana do Festival O Boticário na Dança. Nele, dança e rock and roll ao vivo se unem para criar um manifesto jovem e poderoso sobre a condição de opressão sob a qual está submetido o homem contemporâneo. Fruto da aclamada companhia israelense Batsheva, Schechter toma emprestados elementos da dança folclórica para criar uma movimentação original e contagiante. Segue abaixo a íntegra da entrevista que fiz com ele, publicada ontem no jornal Metro.


Você já esteve na Batsheva Dance Company e também teve uma banda de rock. Você poderia falar da relação entre dança e música em seu trabalho?
Comecei na arte como pianista, quando tinha 6 anos. Meu ponto de partida foi esse: ouvir muitos discos de música clássica. Descobri a dança quando tinha uns 12 anos, por meio da dança folclórica, e o que mais gostei dela foi o aspecto coletivo. Com o piano, eu praticava tudo sozinho. Na dança, eu poderia estar com outras pessoas. Foi meio desafiador, mas também interessante fazê-lo. Quando entrei na Academia, em Jerusalém, escolhi entrar no departamento de dança pelo mesmo motivo. Preferia estar com outros do que sozinho numa sala. E daí entrei na Batsheva. Fiquei alguns anos e foi uma experiência incrível, aprendi muito, mas também sentia que meu coração estava um pouco dividido. Eu realmente queria dançar, mas sentia que o lado musical da minha vida estava dormente e que sentia falta dele. Eu realmente queria me reconectar com esse aspecto. Daí saí do Batsheva. Não sabia bem o que fazer, então comecei a tocar bateria. Meio por acaso, cheguei a Londres e toquei em uma banda de rock, mas ela acabou se desfazendo por falta de grana. Então me vi tendo que dançar de novo em uma companhia. Mas depois de dois anos na cidade, decidi que queria fazer meu próprio trabalho. Foi a primeira vez que me senti pleno, por poder fazer tanto música quanto dança, e fazer esses dois mundos ficarem juntos de uma maneira completamente harmônica. Tive um prazer imenso de poder criar todo o trabalho: a música, a cenografia, a coreografia. É muito difícil, mas há algo de muito satisfatório nisso tudo, algo de muito excitante.


Seu trabalho não parece funcionar bem no vídeo.
Acho que o público tem um grande papel no espetáculo. Talvez ele esteja ciente do fato de que ter outras mil pessoas também testemunhando aquilo qe está acontecendo no espaço é parte do que o torna poderoso. Há algo sobre o espetáculo, o poder da música ao vivo. Algo em que realmente penso quando faço um trabalho é criar algo para ser mostrado, algo parecido com uma grande cerimônia. Sem as pessoas, ele perde a força. Acho que há algo na peça que talvez as faça não se sentirem apenas como espectadores, mas parte daquilo. E talvez você não se sinta assim se a vir em um DVD.


Uma das apresentações de "Political Mother" teve parte das poltronas retiradas para que o público pudesse ficar de pé. Foi ideia sua?
Foi algo que imaginei depois de muita gente me dizer que gostaria de se mexer, que se sentiu preso à cadeira ao ver meu trabalho. Pensamos nisso e encontramos a ideia de fazer o público se levantar se quisesse, como em um show de rock. Fizemos isso em "Political Mother – The Choreographer's Cut", que tem 25 músicos no palco. Então, na verdade, é mesmo um grande show de rock. A diferença é incrível, porque as pessoas se sentem muito mais livres para responder ao trabalho quando estão de pé. Elas gritam e é incrível, eu realmente gosto. Você vê as pessoas deixando a música e a dança se apoderar do corpo delas. E isso também quebra um pouco as regras do teatro.


Você sente que "Political Mother" é a consolidação de sua obra?
Não sei. Não vejo as coisas desse modo. Acho que ser um artista é algo muito frágil. Confiança não é algo com o qual eu me sinta confortável. O trabalho em dança – a coreografia – é muito temporário. Você faz algo, está logo no palco, tem a perfomance, que vai e vem. Então, é difícil para mim ter o sentimento de uma conquista. É muito caótico fazer dança. Não é como escrever um livro. Posso ver um progresso e ter a noção de que meu trabalho se torna mais complexo. Ele se transforma lentamente, mas toma ângulos diferentes. Sempre faço trabalhos sobre o que eu sou, sobre o ponto em que estou na vida.


Que questões o preocupavam enquanto concebia "Political Mother"?
Acho que o principal elemento foi fazer realidade diferentes se chocarem umas com as outras. Cada um desses mundos representa parte da nossa vida ou das energias que existem no mundo. Então eu senti que seria interessante colocá-los próximos um ao outro, quase como em um filme, e criar uma resposta emocional a partir daí. Acho que as primeiras são frustração e raiva. Outra, que vêm depois, é aceitação. Pensei muito e percebi que vivemos em um mundo maluco! Tentei trazer questões sobre controle, perseguição, opressão e a confusão entre escolher seguir algo e acabar sendo escravo desse algo. Em suma, é um trabalho sobre a política de nosso mundo e como sobrevivemos à opressão.


Por que criar um "Choreographer's Cut"?
Foi uma pequena piada. Óbvio que quando fiz o primeiro trabalho, fiz o que realmente queria, mas com "Choreographer's Cut" eu tive mais liberdade. Recebi um apoio para fazer o que eu quisesse, com o dinheiro que precisasse. Isso me deu liberdade para criar uma verdadeira celebração. Não senti que mudei o coração da peça, que é uma massa de gente, e ela acabou ainda mais poderosa. É barulhento, grande e arrebatador.

Um cometa na dança contemporânea

Escrevi o texto abaixo em setembro de 2010, horas depois de ter assistido "Political Mother", de Hofesh Schechter, pela primeira vez, durante a Bienal de Dança de Lyon. Quando soube que a peça estaria no Festival O Boticário na Dança, fiquei animadíssima. As lembranças que tinham era de uma peça jovem e vigorosa, capaz de atingir facilmente a uma plateia leiga, mas sem ser puramente comercial ou cheia de concessões. Uma peça superurbana, com a cara de São Paulo e do público daqui. Pela reação que vi na noite de ontem, parece que ela "bateu". Na minha revisão, no entanto, encontrei alguns poréns. Pensei em reescrever, mas acho que a essência do texto - escrito originalmente para a Folha de S.Paulo, mas nunca publicado - se mantém. Por isso, aqui vai.



Ditadura, semitismo, ritual, massa e pop rock são palavras que se aglomeram em torno do trabalho mais recente do coreógrafo israelense Hofesh Shechter. “Political Mother”, que foi apresentado no último fim de semana na 14ª Bienal de Dança de Lyon, é uma bomba de informações sobre a condição política do homem contemporâneo.
Estabelecendo uma ponte direta entre passado e presente, o trabalho tem arrastado comentários positivos tanto de público quanto de crítica.
A hecatombe provocada por Shechter é anunciada antes mesmo do início da peça. Na entrada da sala, recebe-se um par de tampões de ouvido: prenúncio de que o que viria faria muito, muito barulho.
A trilha, composta com participação do coreógrafo, é posta no volume máximo. Nela, uma música de base, parecida com as tradicionais judaicas, é sobreposta por marchas militares e rock and roll tocados ao vivo, com músicos no próprio palco.
Ao fundo, dois bailarinos se alternam ora no papel de líder de banda rock, ora no de um ditador aos moldes de Adolf Hitler. Enquanto isso, outros tantos tomam o palco numa dança frenética, com movimentos propositalmente cheios de afetações.
A cenografia é carregada, predominantemente escura, coberta de fumaça, com raras aberturas de luz. Todos esses elementos contribuem para uma rica experiência auditiva e visual que empurra inevitavelmente o público para dentro da cena, criando uma atmosfera cativante, principalmente para os mais jovens.
Shechter se aproveita dessa captura para propor uma reflexão sobre a dificuldade da coexistência e os riscos da intransigência política e cultural, num ritmo quem mantém uma tensão de arrepiar.
É um espetáculo por vezes excessivo, que talvez ganhasse mais força caso melhor editado. Mas o saldo é positivo e impressionou o público lionês após uma estreia de sucesso, em maio, na Inglaterra.
Apesar de ter nascido em Jerusalém e ter integrado a tradicional companhia Batsheva, o coreógrafo reside em Londres desde 2002, onde trabalha com o grupo que leva seu nome. “Uprising”, criada em 2006, é o marco que o fez ser apontado como novo “cometa” da dança contemporânea.

quarta-feira, 13 de março de 2013

Construído no "entre"

Cena da primeira parte do espetáculo, "Safo". Crédito: Bruno Veiga/Divulgação

A questão na qual se fundamenta “Dociamargo” se levanta já no neologismo de seu próprio título: algo que não é doce, nem amargo, é dociamargo, as duas coisas ao mesmo tempo, um adjetivo que parece se contradizer em si, mas que, ainda assim, soa viável. Afinal, por que não?

É nesse “entre”, na mistura que faz surgir algo novo, que se constrói o novo espetáculo da Renato Vieira Cia. de Dança. A peça é concebida em duas partes, a primeira de autoria do de Bruno Cezário e a segunda, do próprio Vieira. Cada uma se debruça sobre o drama amoroso a partir de duas figuras gregas,  respectivamente: a poetisa Safo, que tinha como principal temática o amor às mulheres, e o mito de Afrodite, a deusa do amor.

Em cena, os coreógrafos propõem leituras distintas sobre o tema, mas que inerentemente se cruzam. Detentor de uma concepção cênica bastante amadurecida, Cezário abre o trabalho com uma imagem marcante que dará a tônica do que virá. O amor de Safo, segundo ele, é um mergulho sem medidas em um buraco negro, infinito como a saia aparentemente sem fim da bailarina Soraya Bastos. Há, aqui, certo tom de melancolia e desespero, qualidades desse tal “dociamargo” exaltado, pela primeira vez, em um poema de Safo.

Mas é na peça de Vieira que a questão da mescla presente no neologismo do título fica mais evidente. Embalado pela força das tragédias operísticas, ele reflete justamente sobre esse algo novo, inédito, construído no "entre" de coisas distintas, que assusta e seduz ao mesmo tempo. Através das imagens propostas – uma delas com um bailarino sobre saltos altos – faz-se rapidamente uma associação desse “entre” com a cultura transexual, do indivíduo que não é homem nem mulher, mas trans, e que, tal qual como o amor, transborda gêneros e é impossível de se categorizar.

A beleza de “Dociamargo” está em deixar este senso de novidade e de estranhamento guiar a construção coreográfica. Com isso, a peça confere um significado para o termo que não pode ser posto em palavras, mas apenas dançado. E quando só se é possível dizer algo dessa forma, bem, certamente estamos diante de boa dança. 

Serviço: Renato Vieira Cia. de Dança ( Rio de Janeiro)
Onde: Complexo Cultural Funarte/SP – Sala Renée Gumiel (Alameda Northmann, nº1058, Campos Elíseos, tel.: 11 3662-5177)
Horário: 19 horas
Classificação: 18 anos
Ingressos: R$ 10,00 ( inteira ) e R$ 5,00 ( estudantes e idosos)
Capacidade da sala: 70 lugares

segunda-feira, 4 de março de 2013

Nem tudo que reluz é ouro

Tem muita gente que não gosta de galas. Eu até entendo, sabe? Você vê um bocado de peças soltas, sem conexão aparente umas com as outras, e sempre sob o risco de o resultado final não passar de mero exercício de virtuosismo. Justamente por isso, programar uma boa gala é bem mais difícil do que parece.

Digo isso ainda sob o impacto da Gala Royal Opera House, que abriu a temporada 2013 do Theatro Municipal do Rio neste último fim de semana. Anunciada em conjunto com uma bem-vinda parceria entre as casas britânica e carioca, a apresentação causou inevitável expectativa: oito primeiros-bailarinos do Royal Ballet, incluindo os brasileiríssimos Thiago Soares e Roberta Marquez, dançariam algumas das mais finas peças do repertório desta instituição britânica - tudo intercalado pela participação de três cantores do programa Jette Parker para Jovens Solistas.

A sequência de atrações anunciada também era promissora: alguns grand pas-de-deux pesos-pesados, como "Cisne Negro" e "A Bela Adormecida", estariam mesclados a trabalhos dos atuais expoentes da companhia, como Christopher Wheeldon e Wayne McGregor (ele mesmo, o coreógrafo favorito do Thom Yorke!).
 

Mais amor, por favor, para Thiago Soares, ao lado da amada Marianela Nuñez, do grand pas do"Cisne Negro" 
Pois bem, a coisa começou a degringolar quando foi anunciado, logo ao início, que, "por motivos de saúde" do bailarino Steve McRae, as peças "Im Treibhaus", de Alastair Marriott, e o pas-de-deux do balcão de "Romeu e Julieta" - este com Marquez - não seriam apresentadas. Ok, imprevistos acontecem. Mas, em todas as vezes que já lidei com essa situação, sempre havia um esforço para "remendar" a noite com a substituição das obras perdidas. Dessa vez, tive que chupar o dedo.

É que essa simples configuração mudou tudo. O que era para ser secundário - a parte das árias - ganhou destaque acima do esperado e descompensou a apresentação. O "Cisne Negro" do casal Thiago Soares e Marianela Nuñez sofreu com a falta de sincronia entre o ritmo dos bailarinos e o andamento da Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, desta vez sob a regência de Dominic Grier. E quem conhece a obra de Tchaikovski (1840-1893) composta especialmente para balé sabe que vê-la ser dançada fora do tempo, como se deu em alguns momentos aqui, é praticamente um sacrilégio.

Além disso, Soares já esteve bem melhor no palco. Seus movimentos continuam corretos, mas o vigor e a interpretação - seus grandes diferenciais - andam ofuscados por uma espécie de excesso de energia do corpo que o faz gastar força demais para gestos que só fazem sentido em um estado mais desarmado, que exige sutileza.

O duo "Qualia", por Leanne Bejamin e Edward Watson, também pareceu padecer do mesmo mal. Mas... o trabalho de McGregor é excessivamente virtuoso, nele não há momentos de suaves. Além disso, sua questão é mesmo o movimento. Então tudo bem.

Intervalo, rumo ao segundo ato: "a coisa agora vai decolar", penso. Só que não.

Veio Bejamin com "Requiem - Pie Jesu", um solo de Kenneth MacMillan (1929-1992) que não mostra quase nada de um dos coreógrafos que mais soube imprimir sua marca no Royal Ballet. Com "Romeu e Julieta" fora da jogada, restou a Sarah Lamb e Edward Watson dizerem o que realmente representou a obra do cara com uma interpretação do pas-de-deux de "Manon" - comportada, e não arrebatadora, como a música de Massenet implora.

Teve também um come back de Soares & Nuñez com "After the Rain", de Christopher Wheeldon, sob música de Arvo Pärt - e foi aqui, onde só há o piano e o violino como trilha, que a sensação do grand pas do "Cisne Negro" virou certeza. Quem já ouviu "Spiegel im Spiegel" não pode esperar nada menos que sutileza e doçura. E como fazer isso com um corpo tensionado o tempo inteiro? Nesse jogo, Marianela se saiu bem melhor.

Daí chegou a hora da única participação de Roberta Marquez na noite, no grand pas-de-deux de "A Bela Adormecida", também de Tchaikovski, com o tal bailarino que, por motivos de saúde, não dançara outras duas peças (e fez, ainda assim, a melhor variação da noite, vá lá entender como). Ela é uma graça. Seu único pecado foram uns braços ininteligíveis durante as piruetas que acabavam em pescada (essa pose aí de baixo, ó). De resto, ela pareceu ter nascido para ser princesa Aurora para sempre - não à toa, foi dançando este papel, como convidada do Royal, que ela descolou o posto de primeira-bailarina por lá.


Senhor McRae, não me importo de passar mal de vez em quando se isso me fizer conseguir os seus tours en l´air, viu?

E aí.. puft. Agradecimentos do casal. Entram os demais. Agradecimentos de todos... Acabou. Eu, que estava sem o programa, fiquei desconsolada. Onde teria ido parar o conjunto que encerraria a noite? Pelo que tinha lido antes de sair de casa, seria uma peça de Liam Scarlett em cima de música de Strauss II, com a participação de todos, cantores e bailarinos.

Scarlett é a sensação do momento na dança inglesa. Ele abandonou a carreira de bailarino para se dedicar à coreografia, tendo sido apontado no fim do ano passado como artista residente do Royal Ballet. Tudo isso, pasmem, aos 26 anos. Não tinha como não estar curiosa para conferir algum trabalho dele. Mas não. Encerrou aí mesmo com o pas-de-deux, um repeteco da parceria Tchaikovski-Petipa (já vista no "Cisne Negro"), tudo na mesma noite...

Confesso, saí do Municipal do Rio frustrada. Adoro o Royal, mas a gala esteve realmente aquém do que a companhia é. E olha que tive tempo para pensar a respeito de tudo isso, já que o caminho de volta para casa levou umas boas seis horas de estrada. Ainda torço muito para que a turnê de 2015 aconteça. Mas aí, sim, com toda a estrutura disponível e necessária - e com todos de prontidão para os devidos ajustes no programa, quando necessário.

Tão bonitinho por fora, mas por dentro...

Que pena que a reforma do Municipal não restaurou o repeito do público... 
Aviso: o desabafo que você está prestes a ler oscila numa tênue linha entre a ode ao respeito e a chatice de galocha.

A partir de hoje, vou pensar cinco vezes antes de sair de São Paulo para ver algo no Theatro Municipal do Rio. Porque é simplesmente inadmissível querer assistir a um espetáculo de quem você valoriza e honra ao lado de quem não se importa de forma alguma com quem está ao lado e, muito menos, com o artista que está à frente.

No último sábado, durante a Gala Royal Opera House, fiquei ensanduichada entre espécimes que exemplificam bem isso. Do lado esquerdo, uma dupla de senhoras de cabeça branca, aparentemente na casa dos 80 anos, não parava de falar durante as aberturas de atos, com peças de Wagner e Verdi. Do lado direito, um senhor permaneceu o espetáculo inteiro com a luz do celular ligada para acompanhar a "evolução" do espetáculo lendo o programa. No intervalo, percebi que a esposa deste acompanhava a transmissão da novela das 21h, por um tablet, com closed caption.

Ainda neste intervalo, enquanto passeava no hall, um jovem senhor com sotaque estrangeiro perguntou a um dos lanterninhas se não seria possível dar um puxão de orelha no público, pelo sistema de locução, censurando o falatório geral. O funcionário nem cogitou a hipótese. Na volta para o segundo ato, reafirmaram apenas o de sempre: sem fotos, sem bebidas, sem comida (e, obviamente, ainda tivemos que lidar com flashes e ver gente com garrafinha de água na plateia).

Ah! Tem ainda o fato de que, tanto antes do início do espetáculo quanto neste mesmo intervalo, fui comprar o programa e descobri que ele estava esgotado. "Agora só amanhã", disse-me o segurança.

Ano passado, vendo a montagem de "Coppelia" nesta mesma casa, numa montagem do Balé do Theatro Municipal do Rio, fiquei paralisada. Diante do ti-ti-ti atrás de mim, quando os bailarinos já estavam até mesmo em cena, me virei, olhei para a garota que estava falando e fiz aquele sinal de silêncio das enfermeiras, sabe? Com o dedinho na frente dos lábios. A menina se calou imediatamente e eu retornei para ver o espetáculo achando que estaria, enfim, em paz. Daí alguém me dá um tapinha no ombro, me viro e a mãe dela brada em alto e bom som: "Não fale assim com a minha filha, não!!!"

Que reação é possível diante de uma inversão de valores como essa?

Arte é imersão. Adoro a potencialidade encerrada nas três paredes da caixa cênica e todas as trocas que permeiam a fronteira entre o palco e a plateia. Gosto de ver como um artista "funciona" diferentemente com plateia vazia e cheia, e quão maravilhoso é ver-se parte de uma obra, sair dela tocado de alguma forma, com a cabeça fervilhando de ideias, com uma poesia visual dentro de si.

Isso já não é fácil com as condições ideais de temperatura e pressão, quando a maior parte desse peso fica mesmo no ombro dos artistas e em nossos olhares de juiz. Imagine quando NADA no ambiente ao redor favorece, nem a belíssima arquitetura que envolve a cena, nem a equipe da casa que não se estrutura para imprimir um mínimo de programas capaz de atender aos espectadores.

Depois dessa noite, amanheci em São Paulo e resolvi assistir a um concerto matinal da Orquestra Sinfônica Municipal. Sala um tanto esvaziada, um programa com peças de Respighi e Rimsky-Korsakov e um jovem maestro italiano convidado sobre o qual nunca tinha ouvido falar até então.

Houve falhas? No meu ouvido de leiga, um pouquinho, sim. Um desafino no violino aqui, um oboé brevemente mais abafado do que o usual acolá. Mas o resultado conseguiu me emocionar de um jeito que a plateia lotada do sábado não me deixou nem tentar alcançar. E o melhor mesmo foi sentir, na hora dos aplausos, que a minha sensação parecia ser a mesma daqueles que aceitaram dividir, durante hora e meia, aquele espaço ao meu lado. Com respeito e admiração (sim, é simples assim). 

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Ballethunter

Há pessoas que viajam para apreciar vinhos. Outras, para conhecer museus. Há ainda aquelas que se aventuram por restaurantes mundo afora. Eu, basicamente, viajo para ver dança.


Cresci vendo 4 ou 5 fitas VHS com gravações de raras transmissões de balés numa TV paga ainda capenga no Brasil. Em um tempo sem YouTube e com mercado de fitas importadas praticamente inexistente, essa era uma das únicas maneiras de 1) conhecer balés de repertório e as principais companhias capazes de montar peças do tipo com propriedade 2) saber quem eram e como dançavam os grandes bailarinos da minha geração (mesmo com uns dez anos de defasagem).

Não faço ideia quantas vezes revi tudo (bem, pelo menos foi o suficiente pra deixar as VHS sem mofo até hoje). A questão é que, junto desse hábito, veio o desejo de ver essas grandes companhias e suas montagens ao vivo, o que, convenhamos, não é nada fácil quando se mora no Brasil - e, no meu caso até bem pouco tempo atrás, quando se está em uma cidade sem palco adequado e fora do circuito de turnês internacionais.

A única saída pra isso estava mesmo... lá fora. Desse modo, logo após começar a trabalhar, passei a organizar minhas férias tendo isso em mente.

Foi assim que acabei celebrando meu aniversário de 24 anos assistindo ao Bolshoi com sua versão mais recente de "O Corsário" na Ópera de Paris (a elegantérrima Maria Alexandrova fazia Gulnara). Também foi assim que vi Zenaida Yanowsky dançar meu amado "Sylvia" no Royal Opera House, numa dobradinha, no dia seguinte, com "O Quebra-Nozes", conferido de pé, por singelas 6 libras, lá do fundão do teatro (o que não atrapalhou em nada de me emocionar com a Fada Açucarada de Roberta Marquez no palco que ela abraçou como lar).

Mesmo estando agora a 2 horas e meia de Buenos Aires, conheci a capital portenha apenas quando o Balé do Teatro Colón resolveu montar "Manon", e só dei de cara com a capital basca porque o Ballet Béjart calhou de fazer turnê por lá justo quando estava de passagem pela Espanha. Também intensifiquei a ponte aérea com o Rio para ver, pela primeira (e última) vez, Ana Botafogo no balezão "Onegin" e descobrir o jeito de Márcia Jaqueline dançar em "Coppelia".

Ok, há um pouco de capricho em tudo isso. Mas a questão é que cada novo teatro guarda uma história e cada companhia, uma visão de mundo e de encarar a arte que ganha uma dimensão completamente outra quando conferida "em casa".

O fato é que, hoje em dia, praticamente todas as minhas viagens de lazer se organizam em torno disso. Penso sempre em um destino, uma companhia e vou atrás das possíveis temporadas (não necessariamente nessa ordem). A verdade é que só compro a passagem depois de já ter os ingressos garantidos.

Escrevo tudo isso um tanto sob o efeito da euforia. Acabei de passar o cartão para uma pequena parte da "spring season" do NYCB, o fruto de Balanchine. São cinco programas distintos, um dia após o outro, com direito a um mix de obras de novos coreógrafos e de clássicos. Pra completar, estou no aguardo do início das vendas para outros dois programas do ABT. No meio tempo, rastreio mais possibilidades nas adjacências...

Mais do que dinheiro, tudo isso exige mesmo é planejamento. E planejar, no caso de viagens, representa uns 50% da graça de tudo.

Enquanto a viagem não chega, vou esquentando em nível nacional. Próximo fim de semana é hora de voltar ao Rio para a histórica gala do Royal Opera House por lá. Afinal, a caça a balés é um hobby sem fim.