segunda-feira, 4 de março de 2013

Nem tudo que reluz é ouro

Tem muita gente que não gosta de galas. Eu até entendo, sabe? Você vê um bocado de peças soltas, sem conexão aparente umas com as outras, e sempre sob o risco de o resultado final não passar de mero exercício de virtuosismo. Justamente por isso, programar uma boa gala é bem mais difícil do que parece.

Digo isso ainda sob o impacto da Gala Royal Opera House, que abriu a temporada 2013 do Theatro Municipal do Rio neste último fim de semana. Anunciada em conjunto com uma bem-vinda parceria entre as casas britânica e carioca, a apresentação causou inevitável expectativa: oito primeiros-bailarinos do Royal Ballet, incluindo os brasileiríssimos Thiago Soares e Roberta Marquez, dançariam algumas das mais finas peças do repertório desta instituição britânica - tudo intercalado pela participação de três cantores do programa Jette Parker para Jovens Solistas.

A sequência de atrações anunciada também era promissora: alguns grand pas-de-deux pesos-pesados, como "Cisne Negro" e "A Bela Adormecida", estariam mesclados a trabalhos dos atuais expoentes da companhia, como Christopher Wheeldon e Wayne McGregor (ele mesmo, o coreógrafo favorito do Thom Yorke!).
 

Mais amor, por favor, para Thiago Soares, ao lado da amada Marianela Nuñez, do grand pas do"Cisne Negro" 
Pois bem, a coisa começou a degringolar quando foi anunciado, logo ao início, que, "por motivos de saúde" do bailarino Steve McRae, as peças "Im Treibhaus", de Alastair Marriott, e o pas-de-deux do balcão de "Romeu e Julieta" - este com Marquez - não seriam apresentadas. Ok, imprevistos acontecem. Mas, em todas as vezes que já lidei com essa situação, sempre havia um esforço para "remendar" a noite com a substituição das obras perdidas. Dessa vez, tive que chupar o dedo.

É que essa simples configuração mudou tudo. O que era para ser secundário - a parte das árias - ganhou destaque acima do esperado e descompensou a apresentação. O "Cisne Negro" do casal Thiago Soares e Marianela Nuñez sofreu com a falta de sincronia entre o ritmo dos bailarinos e o andamento da Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, desta vez sob a regência de Dominic Grier. E quem conhece a obra de Tchaikovski (1840-1893) composta especialmente para balé sabe que vê-la ser dançada fora do tempo, como se deu em alguns momentos aqui, é praticamente um sacrilégio.

Além disso, Soares já esteve bem melhor no palco. Seus movimentos continuam corretos, mas o vigor e a interpretação - seus grandes diferenciais - andam ofuscados por uma espécie de excesso de energia do corpo que o faz gastar força demais para gestos que só fazem sentido em um estado mais desarmado, que exige sutileza.

O duo "Qualia", por Leanne Bejamin e Edward Watson, também pareceu padecer do mesmo mal. Mas... o trabalho de McGregor é excessivamente virtuoso, nele não há momentos de suaves. Além disso, sua questão é mesmo o movimento. Então tudo bem.

Intervalo, rumo ao segundo ato: "a coisa agora vai decolar", penso. Só que não.

Veio Bejamin com "Requiem - Pie Jesu", um solo de Kenneth MacMillan (1929-1992) que não mostra quase nada de um dos coreógrafos que mais soube imprimir sua marca no Royal Ballet. Com "Romeu e Julieta" fora da jogada, restou a Sarah Lamb e Edward Watson dizerem o que realmente representou a obra do cara com uma interpretação do pas-de-deux de "Manon" - comportada, e não arrebatadora, como a música de Massenet implora.

Teve também um come back de Soares & Nuñez com "After the Rain", de Christopher Wheeldon, sob música de Arvo Pärt - e foi aqui, onde só há o piano e o violino como trilha, que a sensação do grand pas do "Cisne Negro" virou certeza. Quem já ouviu "Spiegel im Spiegel" não pode esperar nada menos que sutileza e doçura. E como fazer isso com um corpo tensionado o tempo inteiro? Nesse jogo, Marianela se saiu bem melhor.

Daí chegou a hora da única participação de Roberta Marquez na noite, no grand pas-de-deux de "A Bela Adormecida", também de Tchaikovski, com o tal bailarino que, por motivos de saúde, não dançara outras duas peças (e fez, ainda assim, a melhor variação da noite, vá lá entender como). Ela é uma graça. Seu único pecado foram uns braços ininteligíveis durante as piruetas que acabavam em pescada (essa pose aí de baixo, ó). De resto, ela pareceu ter nascido para ser princesa Aurora para sempre - não à toa, foi dançando este papel, como convidada do Royal, que ela descolou o posto de primeira-bailarina por lá.


Senhor McRae, não me importo de passar mal de vez em quando se isso me fizer conseguir os seus tours en l´air, viu?

E aí.. puft. Agradecimentos do casal. Entram os demais. Agradecimentos de todos... Acabou. Eu, que estava sem o programa, fiquei desconsolada. Onde teria ido parar o conjunto que encerraria a noite? Pelo que tinha lido antes de sair de casa, seria uma peça de Liam Scarlett em cima de música de Strauss II, com a participação de todos, cantores e bailarinos.

Scarlett é a sensação do momento na dança inglesa. Ele abandonou a carreira de bailarino para se dedicar à coreografia, tendo sido apontado no fim do ano passado como artista residente do Royal Ballet. Tudo isso, pasmem, aos 26 anos. Não tinha como não estar curiosa para conferir algum trabalho dele. Mas não. Encerrou aí mesmo com o pas-de-deux, um repeteco da parceria Tchaikovski-Petipa (já vista no "Cisne Negro"), tudo na mesma noite...

Confesso, saí do Municipal do Rio frustrada. Adoro o Royal, mas a gala esteve realmente aquém do que a companhia é. E olha que tive tempo para pensar a respeito de tudo isso, já que o caminho de volta para casa levou umas boas seis horas de estrada. Ainda torço muito para que a turnê de 2015 aconteça. Mas aí, sim, com toda a estrutura disponível e necessária - e com todos de prontidão para os devidos ajustes no programa, quando necessário.

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