sexta-feira, 30 de maio de 2014

Dançar com Coragem


por Amanda Queirós

A canadense Louise Lecavalier é uma bailarina que desafia o tempo. Assim que pisa no palco, seus 55 anos de idade se anulam tamanho o vigor que ela apresenta. Ao longo de mais de três décadas de carreira, esse domínio do cronos também se tornou uma assinatura do seu tipo de movimento, capaz de controlar uma velocidade aparentemente incontrolável do corpo com extrema qualidade e precisão.

Tem sido assim desde 1981, quando ela entrou para a companhia La La La Human Steps e se tornou musa de toda uma geração de bailarinos, com seus longos dreadlocks platinados, ao personificar o pensamento coreográfico de seu criador, Édouard Lock, com quem manteve uma frutífera parceria artística até 1999.

De lá para cá, Lecavalier embarcou em projetos de outros artistas dentro de sua própria companhia, a Fou Glorieux, criada em 2006, mas foi somente no ano retrasado que tomou coragem para também se aventurar pela coreografia. O resultado é “So Blue”, misto de solo e dueto apresentado em São Paulo e no Rio, na última semana, ao lado do bailarino Frédéric Tavernini, como parte do 2º Festival O Boticário na Dança.

Por esse trabalho, a canadense conquistou o Prêmio Léonide Massine de melhor bailarina contemporânea em 2013, honraria mais recente de uma coleção na qual se destacam o título de Personalidade da Dança do Ano de 2011 pelo Sindicato de Críticos da França, o Prix de la Danse de Montreal, também em 2011, e um Prêmio Bessie – o Oscar da dança nos Estados Unidos – em 1985. Tudo isso faz com que aposentadoria ainda pareça um conceito distante de sua vida mesmo que a maioria dos bailarinos de sua mesma idade já tenha parado de dançar. O segredo para tal feito? “Coragem”, como ela revela à Revista de Dança. 

 

Como foi passar também a coreografar?

Essa foi uma decisão muito estressante, apesar de, nos últimos anos, eu ter trabalhado com coreógrafos diferentes que me deixavam improvisar bastante. Mas assumir uma produção inteira e tomar todas as decisões sozinha parecia algo muito grande. Esses trabalhos me deram um pouco mais de confiança. O que percebi é que você nunca está tão só, porque sempre há pessoas dando tudo o que podem para você. Ainda é algo estressante, mas porque exijo o mesmo que exijo de mim como bailarina. Para mim, não há uma fronteira tão drástica entre um [ofício] e outro.

 

De que forma a cor azul, que batiza “So Blue”, mexe com você?

Adoro cores, apesar de o preto ser sempre predominante em minhas danças porque tenho essa ideia boba de que preto é revolução, contestação. No meio da dança contemporânea em que me insiro a moda é não dançar, mas às vezes ela se torna muito intelectual. Já eu quero sempre explorar os limites do corpo. Então, minha primeira ideia para essa peça era que ela seria intensa e preta, algo na linha “Back to Black”. Ao longo do processo improvisei muito e surgiram outras camadas que não combinavam mais com preto. Percebi como eu era cheia de contradições e oposições. Foi quando o azul me chegou como algo mais abrangente e adequado para representar isso. Não é uma ideia do azul como o [gênero musical] blues, é pela cor em si, algo muito leve e profundo ao mesmo tempo. O que senti no estúdio é que há algo de leve no dançar.

 

É curioso você destacar a leveza, já que sua dança é conhecida justamente por ser bem intensa e esses aspectos, em geral, são vistos como opostos.

Mas não são! As coisas podem ser inclusivas. Tentam fingir que o balé é leve e delicado, quando, na verdade, é extremamente difícil. Não gosto dessa falsa mensagem. O que danço não é algo sem leveza. É uma luta pela vida com todas as dificuldades que encontramos pelo caminho e que estão dentro de nós. E essa é uma jornada que pode ser leve. Não quero apenas representar isso. Eu quero viver isso.  

 

No último ano você recebeu prêmios como melhor bailarina, 30 anos depois de já ter feito coisas bem radicais. Como você percebe a evolução do seu corpo?

Não sei... Não confio nos números. O que eu vejo é uma incrível boa forma. Quando eu estava com 25 anos, pensava que talvez no futuro eu estivesse diferente. Mas minha mente ainda é a mesma, ela continua livre, aberta, curiosa, insatisfeita, intranquila. Sei que é surpreendente. Você não é a primeira a me falar isso. Mas falta-me ainda entender tanta coisa! Sinto-me completamente viva e estou lutando e descobrindo coisas novas todos os dias. Muita gente se deixa acomodar por palavras, ideias, repetições. Já eu, quanto mais vejo algo, mais enxergo opções e aberturas. É por isso que ainda danço, porque ainda sou fascinada pelo que o movimento pode evocar, pelo que posso aprender ao me colocar diariamente em uma situação física e criativa. Também se deve levar em conta que tudo o que eu fiz nos anos 1980, sempre no meu máximo, me levou ao que faço agora. Talvez não fosse assim se eu tivesse dançado de uma forma mais tranquila, apenas com meu talento, quando era jovem. Só que eu não dançava com meu talento, dançava com minha coragem – e ainda danço com ela.

 

Em que ponto você percebeu que era hora por fim à parceria com Édouard Lock e ir adiante?

É difícil resumir... Para mim, o jeito como Édouard se move, e o que ele coreografa para outras pessoas, é extremamente pessoal e original. Eu já havia dançado em duas companhias em Montreal, estudado em Nova York, visto algumas coisas e  começado a ter minha própria ideia do que queria fazer enquanto dança: algo mais próprio do meu tempo e que falasse com todo tipo de gente. Percebi que o trabalho dele era próximo de mim e por isso o achei tão incrível. Foi um período fantástico e eu poderia ter feito isso para sempre. Saí porque ele foi para outra direção, para o balé e as sapatilhas de ponta. Pensei que poderia lidar com isso, e por um tempo eu pude, mas não havia muito o que intercambiar com os outros bailarinos. Eu estava meio solitária e achei que precisava evoluir em outra direção. Na época eu também estava seriamente machucada, com um problema enorme no quadril, o que comprometia as turnês. Eram fatores com os quais eu não podia lidar mais. Pensei que, se eu fizesse pequenos projetos, seria responsável apenas por mim mesma e faria as regras de forma mais condizente com o que eu havia me tornado.    

 

Você trabalhou com David Bowie na turnê Sound+Vision, de 1990. Como foi a experiência de dividir o palco com ele?

Foi fantástico, pareceu uma grande folga. Eu dançava cinco minutos com ele no palco, o resto era em vídeo, apresentado enquanto ele tocava. Mas sabe de uma coisa? Quando entro no estúdio para trabalhar com qualquer pessoa, somos apenas dois seres humanos com algo para fazer. Essa zona neutra é o melhor lugar para se estar com alguém. Eu me apaixonei por David assim que o conheci. Não tenho como descrevê-lo em apenas uma palavra. Ele é um grande artista e essa foi uma grande oportunidade. E eu me tornei amiga dele. Afinal, você não pode ser distante de alguém com quem você dança. 


(Texto publicado originalmente na Revista de Dança em maio de 2014)

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